A
fumaça asfixiante que, como cortina, se deitou sobre a justiça penal
brasileira, pela discussão a propósito do juiz de garantias, tem escondido da
opinião pública o verdadeiro fogo aceso contra o combate ao crime. No foco do
incêndio, as novas regras sobre prisão preventiva, o acordo de não persecução e
a colaboração premiada têm potencial para consumir a eficácia do Estado na
apuração e responsabilização por graves crimes.
De
uma indefinida posição dos tribunais, o chamado pacote “anticrime” legitimou
uma série de restrições quanto à prisão preventiva. Dentre elas, a lei passou a
exigir uma relação de “contemporaneidade” entre o decreto de prisão e o fato
que a justifica.
Ou
seja, ameaçar testemunhas, subtrair provas – que também são crimes -, desde que
praticados em passado breve, podem não mais ensejar a prisão, claro estímulo a
esse tipo de comportamento. A relação de contemporaneidade também pode ser
enxergada como uma espécie de reiteração ou permanência na atividade criminosa,
tornando a prisão preventiva inócua, na prática, pela confusão com o flagrante
delito.
Todos
os crimes que tenham pena mínima (frise-se, pena mínima!) inferior a 4 anos
– independentemente do quantitativo
máximo da pena e desde que praticados sem violência ou grave ameaça –
submetem-se ao novo regime negocial de “não persecução”. Nesse sistema, o autor
do crime basicamente limita-se a pagar uma multa ou a prestar serviços à
comunidade, com as notórias dificuldades inerentes à fiscalização.
Portanto,
crimes como quadrilha, constituição de milícia, organização criminosa, tráfico
privilegiado, corrupção, peculato, aborto não violento, importunação sexual,
corrupção de menores, exploração sexual de crianças, lenocínio, moeda falsa,
lavagem de dinheiro, etc. todos, serão punidos com multa e prestação de
serviços à comunidade.
Salvo
se o promotor conseguir demonstrar heroicamente, por elementos concretos, a
insuficiência dessas medidas, o que, sem dúvida, precipitará uma torrente de
habeas corpus. Para ilustrar o quadro, dos inúmeros crimes previstos no Código
Penal, apenas 27 (vinte e sete) não se incluem no âmbito da benesse legal.
A
nova sistemática da colaboração premiada que, por natureza, é considerada um
meio de obtenção de prova, dificilmente cumprirá essa finalidade. A lei proíbe
uma série de cláusulas negociais que, por infundirem segurança no espírito do
proponente, fomentam o uso do instrumento, vedando, ainda, a adoção de medidas
cautelares com base nas declarações do colaborador.
Por
outro lado, se o criminoso agora pode celebrar acordo de não persecução em
universo gigantesco de crimes, que interesse terá em colaborar com a justiça,
revelar o funcionamento da organização e delatar comparsas?
A
par do juiz de garantias, são alterações drásticas na estrutura do processo
penal brasileiro, já em vigor nas brasas da legislação, cujos efeitos
imprevisíveis no plano da segurança pública ainda não eclodiram na consciência
do povo, titular do poder que, a essa altura, há de se perguntar: foi aprovado,
de fato, um pacote “anticrime”? Que as águas da justiça, com serenidade, possam
evitar na interpretação da nova lei o aumento das chamas opostas à concepção
original do projeto. (Estadão)
Segunda-feira,
03 de fevereiro, 2020 ás 18:00
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