A
Lava Jato foi o instrumento mais eficaz produzido na história moderna do
Brasil. Imaginar que ela voltará aos tempos da roubalheira é uma fantasia
Num
discurso de despedida na Câmara do Comércio, o embaixador sueco Per-Arne
Hjelmborn disse esta frase para concluir: “O Brasil não é um país monótono”.
Fui convidado para falar um pouco sobre as expectativas na volta do exílio e de
como as coisas se passaram nestes 40 anos. Foi uma oportunidade para agradecer
a generosidade com que a Suécia recebeu os brasileiros após o golpe no Chile.
A
frase de Hjelmborn não me saía da cabeça. Pensei: está morrendo o caso Neymar e
entrando em cena os vazamentos na Operação Lava Jato.
Na
primeira leitura do caso, achei um pouco exageradas as reações que viam naquilo
uma tempestade em copo d’água ou que viam o fim da Lava Jato e uma regressão à
era da impunidade no Brasil. Previ alguma coisa no meio: agitação política e um
desgaste para a Lava Jato.
É
difícil de considerar com frases sem o contexto. Mais ainda basear-se puramente
nelas, pois, de um modo geral, vazamentos que abalam a política costumam ser
como terremotos, com explosões sucessivas. Não se sabe quando será nem a
intensidade do próximo abalo.
O
conjunto das frases que li mostra uma proximidade entre Sergio Moro e os
promotores. Revela uma orientação a uma das partes. A maioria dos juristas que
se pronunciaram acha que rompe com o princípio de imparcialidade.
Haverá
consequências políticas e consequências jurídicas. Tanto numa como em outra, é
importante preservar a Lava Jato. Algumas pessoas acham que ela foi negativa
para o País. Não é o meu caso. A Lava Jato, que condenou 159 pessoas, trouxe
bilhões de reais de volta ao País e repercutiu no continente levando
ex-presidentes do Peru à prisão, foi um passo gigantesco na luta contra a corrupção.
Mas não está isenta de crítica nem de enquadramento jurídico. Ela foi uma
tentativa de corrigir os fracassos do passado: operações sufocadas, como a
Castelo de Areia e o caso Banestado. Era todo um aparato político a ser
enfrentado e um Supremo Tribunal Federal (STF) severo na garantia dos direitos.
A
proximidade entre juiz e promotor não é muito questionada quando se trata do
combate a uma organização criminosa comum. É normal até a prisão de advogados
de defesa. Neste caso, não se questionaria um juiz que indicasse a produção de
provas, desde que avaliasse com serenidade se válidas ou não. Quando repórter
policial, observei em alguns júris que o promotor se sentava ao lado do juiz e
o advogado de defesa ficava no plenário. Em termos rituais, já era um traço de
proximidade.
Mas
estamos no campo da política, onde tudo é banhado por um outro ar. A Lava Jato
conseguiu driblar muitos obstáculos neste território.
No
meu entender, ela se fragilizou com a ida de Moro para o governo Bolsonaro. É
um governo que prioriza o combate ao PT. A Lava Jato alcança um espectro muito
mais amplo, atravessa fronteiras, leva a uma reavaliação dos bancos suíços, um
terremoto na política sul-americana. A opção de Moro, simbolicamente, associou
Bolsonaro à Operação Lava Jato e o PT como seu alvo.
Pode-se
argumentar que Moro como ministro, ao contrário de outros, ajudará a Lava Jato.
O problema é que ele a encarnou e seu desgaste terá repercussão em todo o
trabalho daqui para a frente.
É
sempre interessante saber quem invadiu o aplicativo, quem encomendou o ataque.
Mas as consequências estão aí. Faça chuva, faça sol, o PT grita “Lula livre”.
Por que deixaria de gritar agora, com o impulso dos vazamentos? Renan
Calheiros, no Congresso, sempre quis aprovar a lei do abuso de autoridade. E
Gilmar Mendes, por sua vez, já acenou com a possibilidade de usar os vazamentos
como prova contra a Lava Jato. Enfim, não há outro caminho: segurar o tranco,
reconhecer as frases autênticas, descartar as fakes produzidas na rede e
analisar uma a uma, colocá-las no contexto.
No
caso das operações que Moro mencionou num diálogo, talvez seja mais fácil de
determinar o contexto. Moro autorizava operações da Lava Jato. Era razoável que
perguntasse pelo destino de suas autorizações anteriores. Tecnicamente para um
juiz, suponho, a imparcialidade é sempre uma tensão. Por inércia, pode estar
ajudando uma das partes, precisamente uma suposta organização criminosa.
Politicamente, de novo, as coisas são mais complicadas.
Ao
entrar no governo Bolsonaro, Moro acionou inúmeras sinapses, o vazamento do
diálogo de Dilma e Lula antes que ele assumisse o cargo de ministro, por
exemplo. Tecnicamente, poderia ser visto como uma tentativa de bloquear a fuga
de um acusado. Comumente, um acusado desaparece. Lula iria se refugiar no foro
privilegiado. A repercussão disso no impeachment passa a ser vista como
intencional.
Se
Moro resistisse no cargo de juiz, talvez enfrentasse melhor os ventos
contrários. De todos os obstáculos políticos a enfrentar, o mais insidioso e
melífluo é a atração pelo poder.
Estrategicamente,
a Lava Jato não pode se associar a um governo específico. Caso contrário, ela
será de alguma forma sempre cobrada. Onde está o Queiroz?, por exemplo. A
investigação está correndo em nível estadual, mas envolve o filho de um
presidente, tem repercussão nacional, trabalha suspeitas não só de rachids, mas
de envolvimento com as milícias. Por que não esclarecer no ritmo daqueles
tempos? Cá para nós — com o perdão da rima —, já saberíamos muito sobre
Queiroz.
Mexer
nisso agora pode parecer suicídio: afinal, o governo é um aliado da Lava Jato.
Mas o grande aliado é a parte da sociedade que quer combater a corrupção como
tarefa de Estado, com os cuidados legais, mas acima de todos os partidos.
Não
é uma tempestade em copo d’água. É um momento decisivo. Durante anos lutei, no
Congresso, entre outros temas, contra a corrupção no sistema político que
construímos. Resultados modestos, desanimadores.
A
Lava Jato foi o instrumento mais eficaz produzido na história moderna do
Brasil. Imaginar que se pode voltar o ponteiro aos tempos da roubalheira é uma
fantasia. Os tempos são outros, a sociedade é outra: não deixa.
Fernando
Gabeira (publicado no Estadão)
Domingo,
16 de junho, 2019 ás 19:00
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